Ariana
Paulo Almeida
31 / 05 / 2008
09:10
Constantemente esquecida num canto, mais cheio de lixo do que qualquer outra coisa, ela vivia o dia a dia sempre triste, sempre cinzenta. Passavam por ali umas poucas pessoas nas suas azáfamas e correrias e nem reparavam que não estavam sós. Algumas poucas olhavam com nojo ou com a nova geração de fobias para a figura incomum e pouco apelativa, e ela sabia que não podia fazer nada para alterar o peso daqueles olhares. Mas conhecia pelo nome – Fernando – a única pessoa que lhe dava alguma alegria, tão somente porque lhe dava atenção. Também nós, na juventude, nos deixamos tão facilmente levar pela simples atenção dispendida, pelas palavras que nos são dadas ou pelos sorrisos, mas ela já não era uma jovem... não sabia contar a sua idade, é certo, mas pesando bem a tristeza e a memória, contava que estava mais perto do fim do que do princípio. Mal se alimentava, sem vontade, forçando-se a viver para o dia seguinte pela quase miserável esperança de dialogar com aquele que perdia um instante que fosse a olhar para ela dando-lhe importância.
- Olha quem está aqui, à espreita! A minha amiga silenciosa!
Ela ouvia mas não podia responder. Se pudesse corava com o facto de lhe falarem... o coração por certo batia de maneira diferente.
- Como não me dizes o teu nome, e já começo a ser amigo porque te vejo todos os dias, vou baptizar-te! ...de Ariana. Fica-te bem! É nome de deusa!
Não sabia o seu próprio nome... não tinha , provavelmente... Ariana soava-lhe a melodia. Gostou. Moveu-se um pouco para dar a entender que não estava a dormir, nem a ignorar aqueles comentários, e deu cinco ou seis passos para um dos lados, sem desviar o olhar. Mas o seu olhar era vazio e Fernando nunca perceberia que ela o olhava. Continuava a falar como quem fala com os botões, com as paredes... não precisava de resposta.
- Já sei que um dia destes deixo de te ver... alguém te virá enxotar dessa esquina onde arrumaste as tuas bagagens, mas enquanto estás, fazes-me companhia, que eu tenho de tratar destes vasos de sardinheiras dentro do alpendre, e daquelas hortênsias no canteiro junto da janela da copa. Se te vêem é certinho que vais embora... mas se ficares discreta, como tens ficado nestes sete dias que te tenho visto aqui, fazemos companhia um ao outro... Assim como assim, já todos me acham louco por falar sozinho, nunca reparam que há tantas vozes a responder. Agora vão condenar-me porque me dei ao luxo de te dirigir a palavra...
Passaram dias assim, só ele a falar, mas nunca desprezando aquele ritual de ver quem o acompanhava... tinha de facto uma ponta de loucura, pois já o ouvira dar os bons dias à acácia que estava no meio do relvado. Mas Fernando era especial, porque reparou nos que todos desprezam e olhou-os como iguais a tantos outros.
Ariane, na simplicidade das coisas que não tinha capacidade de pensar, era feliz... Havia quem, no mundo inteiro, olhasse para ela, lhe desse valor... havia quem reparasse nela sem ter um julgamento fácil pronto a disparar, mas como criatura de Deus. Naquele final de tarde, caminhou pela sua teia até a um canto recôndrito junto às telhas velhas onde esperaria sorridente por um amanhã de esperança...