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Barbas

Ninguém o via, ao vaguear pelas ruas e ruelas perdidas em plena cidade do Porto. A sociedade já criara anticorpos sociológicos para ignorar o mau cheiro, e os olhares fingidores das pessoas que passavam transmitiam um “está tudo bem” não conseguindo ou não querendo ver além dos jornais que serviam de cobertores. No entanto, uma voz chamou por ele, com um eco aparente de outro mundo, como se numa dimensão inferior à dos comuns mortais, os desgraçados conseguissem comunicar.
- Barbas!!
Era já aquele o seu nome, a parte da sua identidade que servia para o mundo iniciar as interacções. - Tens alguma coisa que se beba? - perguntou a mesma voz, agora já com um rosto, queimado e velho. - Não - respondeu ele - não tenho nada! Só a dor nas costas e o jornal de ontem. - Não passaram aqui com a merenda? - Talvez. Eu não estava cá. Sem ser preciso mais palavras, simplesmente foi-se embora como voltou, desaparecendo num qualquer submundo, ou talvez somente no horizonte que não vemos por estar atrás das costas. «Barbas» - pensou para si mesmo - «É o meu novo nome...». As dúvidas foram passando pela cabeça, já muito consumida pelos anos, e no todo de uma vida em memória, com todas as suas experiências e todas as suas vivências, Barbas não conseguiu lembrar- -se do seu nome. Numa partida pregada pela vida, conseguia dizer o nome de todas as ruas, como taxista que havia sido; conseguia dizer o nome dos vendedores do mercado do bulhão pela ordem das bancas, conseguia recordar com exactidão os rostos e as vidas de todas as pessoas com quem tinha vivido, sabia as datas de quase todos os grandes acontecimentos mundiais do seu tempo... mas não se conseguia lembrar do seu próprio nome. «Raios!» - pensou - «Tanta bebida... Agoras estás condenado a ser Barbas para sempre» Ao olhar para o céu, numa totalidade de azul incomum para os dias frios de Novembro, sentiu o sol banhar-lhe o rosto, ainda que sem força para o aquecer. Apertou o casaco para vencer o frio, encolheu os ombros e falou em voz alta mas sozinho: - De que serve o meu verdadeiro nome, se já só reajo aos gritos dos meus amigos? O que é um nome, senão aquilo que me representa, a minha identidade para os outros? Podia ser Francisco ou Emanuel ou Paulo, mas os que chamam por mim vão sempre chamar-me Barbas! E dando alguns passos para o escuro de um beco, completou: - Chamar-me Barbas para o resto da vida também não é uma pena muito pesada. Não sei quantos dias mais me restam, mas não serão muitos. Sentou-se num canto imundo. Ao pé dele, remexendo uma lata de lixo, um cão rafeiro interrompe calmamente a sua própria demanda por alimento para olhar nos olhos daquele homem. Lambe o focinho, vai em direcção a ele e sem latir nem ganir, diz-lhe: - Mudaste muito, sofreste muito, mas não deixaste de ser Guilherme! E decidindo remexer outros lixos, foi-se embora. Guilherme ficou parado! Olhou para as mãos, para as garrafas de vidro vazias... tinha recuperado o seu nome, num reavivar da memória... «Já sei novemente quem sou!»... depois duvidou: «Mas foi um cão que mo disse!?!». Ou o cão era mensageiro, ou o cérebro estava a deixar de funcionar? Decidiu! «Qualquer das duas hipótese, hoje mesmo vou deixar de beber!»

Sobre o autor

Viajar no tempo, até à altura em que escrevia coisas soltas, sem nexo, vindas lá do fundo do esgoto da minha adolescência e juventude... por vezes pode cheirar mal.

Sobre o leitor

Um perfeito desconhecido, amigo de longa data... uma pessoa 5 estrelas, amigo do amigo, devia abrir-se mais aos outros.