O CAMINO - Anexo I - Notas Finais (ou pequenos à-parte)
1) Oviedo: Cidade Suja, Cidade Limpa
Cheguei a Oviedo e pareceu-me uma cidade como tantas outras cidades no estrangeiro, que até são limpas mas os seus passeios em cimento dão um ar mais cinzento e portanto mais escuro, que o habitual em Portugal, onde a calçada portuguesa com passeios brancos dá uma luz diferente.Nas viagens para a frente e para trás, à procura de onde comer, vimos mais que uma vez um «ritual» para servir a sidra típica das Astúrias, esticando o braço bem acima da cabeça, com a garrafa a deixar cair o seu conteúdo para um copo seguro com a outra mão junto à cintura. Há-de ser uma tradição daquelas que nem se sabe de onde vem, mas que aceitamos como normal.
Neste jogo de acertar no copo a metro e meio de distância, há os bons jogadores e os maus jogadores, e por isso também vimos com alguma frequência, nas esplanadas, o ritual a dar em asneira espalhada pelo passeio.
Com uma bebida como a sidra (semelhante à cerveja) o cheiro acumulado nos passeios não haveria de ser grande coisa, com o passar do tempo.
De manhãzinha, quando fui do albergue à Catedral para começar a verdadeira aventura, vi vários carros municipais em várias praças maiores do centro histórico, a lavarem o chão à mangueirada. Confirmado pouco depois por um grupo de malta local, meio ébria e vinda da sua noitada, que nos interrompeu para um foto de grupo e uma pequena conversa sobre como Oviedo é considerada uma das cidades mais limpas de toda a Europa, e que o processo de lavagem é feito TODAS AS NOITES! Mais difícil do que manter a cidade limpa, é estar constantemente a sujar e a limpar. Mérito para Oviedo.
2) Chegar à América
Logo no primeiro albergue, tudo foi «diferente»... mesmo sendo o meu primeiro #camino, eu percebi que era diferente.A pessoa que nos recebeu no final da primeira etapa não era espanhola, mas sim norte-americana. Revelou logo ser uma pessoa acessível com quem falávamos facilmente, e ao mesmo tempo de forma profunda ou íntima. Era também atenta e atenciosa, procurando o bem estar dos peregrinos.
Numa partilha de como fora ali parar, contou a história do seu primeiro #camino, e como no final da primeira etapa, teve um problema que a impediu de continuar. Explicou que toda a vivência lhe parece na altura superficial, mas quando voltou para os E.U.A, «caiu a ficha», e logo percebeu que o #camino já representava algo maior na sua vida, que não saberia explicar, mas que a chamou de volta.
Ficámos com a metáfora do "chegar à América" para marcar os momentos em que previámos que cada outro iria cair em si e mudar a sua vida para sempre impulsionado pelo Camino de Santiago de Compostela!
3) Óleo de Côco e a pele assada
Na primeira etapa, fiquei logo com um problema no joelho. Tive de fazer gelo e anti-inflamatório, para poder continuar, e gerir o esforço do mesmo. Mas ao final da segunda etapa, o joelho não chegou a ser preocupação porque fiquei com as coxas quase em sangue devido à fricção entre elas (estou gordo!)...Na altura desvalorizei e achei que no dia seguinte já estaria melhor. E no dia seguinte, não sentindo grande dor, acabei por forçar a terceira etapa a friccionar as coxas, pelo que cheguei ao fim com dificuldade e com a pele das faces interiores das coxas num estado lastimável.
Em Tineo, eu cheguei a ir à farmácia comprar compressas e adesivo para tentar fazer um curativo que permitisse continuar a caminhada sem pôr em causa a minha saúde. Em conversa com quem tem mais experiência que eu, foi-me referido que algo à base de óleo de côco ajudaria imediatamente a hidratar a pele e a reduzir substancialmente o atrito.
De volta ao albergue, apercebo-me que existe uma mesa cheia de pequenas coisas esquecidas por peregrinos no passado... champôs, desodorizantes, pentes, até uns binóculos lá estavam. Aproveitei para procurar se existia algum creme gordo que pudesse ser-me útil, e eis que naquele «mercado» super barato (gratuito, na verdade) encontrei uma bisnaga de um produto à base de óleo de côco, que passei a usar para besuntar as coxas todos os dias antes do arranque da etapa.
Só depois de algumas etapas a fazer este procedimento, e a notar melhorias significativas nas dores e no estado da minha pele, é que, ao analisar a bisnaga com mais atenção, fui confrontado com o facto de aquilo ser GEL DE BANHO e não CREME HIDRATANTE.
Conclusão: continuei a usar!!
A verdade é que eu notava que estava a ter resultados, e por isso continuei a usar até ao final da Peregrinação.
4) Porque lavava a roupa tantas vezes?
Na verdade, nos primeiros dias sujei demasiada roupa... usava e colocava num saco para lavar posteriormente, mas percebi rapidamente que teria de ser menos exigente sobre o estado impecável da roupa ao início do dia, e a gerir as mudas de roupa que tinha.No entanto, e relacionado com a história anterior, a verdade é que eu levava somente boxers desportivos, e nas 6 peças que levei, havia duas que eram maiores e em algodão, e os outros 4 numa fibra sintética, mais elástica.
Com o episódio das coxas a ficarem quase em sangue, percebi que as peças sintéticas não me protegiam as coxas, por serem muito fininhas e terem uma elasticidade que as puxava pela perna acima. Por isso desde a 3ª etapa até ao final, teria de conseguir gerir somente 2 pares de boxers.
Vai daí, todos os dias tinha de ter a preocupação de lavar essa roupa interior que era escassa.
5) I don't want to carry it! It's too heavy!
Em Lugo, já deitado na cama, fui abordado por uma rapariga alemã que me perguntava se eu conhecia um peregrino Português que também era Alemão. A descrição remetia-me para o David, mas também não tinha qualquer contacto, portanto não a podia ajudar.Ela explicou-me que havia um rapaz que nesse dia teve de desistir do #camino por lesão, e que a tinha encarregue de fazer chegar ao David um objecto que este tinha emprestado ao desistente. Depois disse-me "I don't want to carry it, it's too heavy".
Disse-lhe que de manhã falaria com os portugueses a ver se havia alguma forma de entrar em contacto. A solução dela foi deixar o objecto junto ao guichet de checkin.
De manhã, explicando a situação, o Manel conseguiu usar a ligação Instagram de um outro espanhol, e através deste conseguiu pôr-se em contacto com o David. Ficou combinado que haveriam de se cruzar durante o dia, portanto o Manel carregou o objecto.
Obviamente que o remate desta história tem de ser algo completamente surreal como: o objecto em questão era uma joelheira, que não pesaria mais do que 200g
6) Lições de Vida
Conheci uma pessoa, e tive tempo para conhecer toda a história de vida de alguém que, sendo novo, esteve confrontado com problemas cardíacos sérios. Pôs-me logo "em cheque", pensar que depois desse episódio da sua vida, já tinha feito o #camino 4 vezes, e todos os dias encarava as etapas com optimismo.Depois conheci um homem britânico, que também já tinha feitos vários Caminos, e que fazia agora o Camino Primitivo, de dificuldade mais elevada... com a pequena nuance de ter 79 anos de idade, e mesmo assim fazia todas as mesmas etapas que eu.
Em terceiro, conhecemos um exemplo de força quase sobrenatural, que fez algumas etapas coincidentes com as nossas (embora poucas vezes tenhamos de facto cruzado com ele no #camino). Doente oncológico, com dois tumores do cérebro, arrasou completamente a hipótese de eu me queixar do que quer que fosse.
Notas MESMO finais
* A fotos não são todas minhas, agradeço a quem me emprestou algumas fotos do seu acervo pessoal, mesmo sem saber, para que eu pudesse ilustrar estas crónicas.
* Estas memórias servem-me como auxiliares de memória, pois sei que o tempo vai apagar grande parte da experiência. Que fique o mais importante na memória, e tudo o resto nestes textos. Assim, pode acontecer eu editar estes artigos para os enriquecer com mais pormenores que considere importante registar para a posteridade. Quero com isto dizer que amanhã, os textos podem estar diferentes.
* Os peregrinos com quem me cruzei que entram nesta narrativa não sabem que escrevi isto (provavelmente nunca saberão), e nem tenho o consentimento para partilhar os seus nomes e suas histórias... por isso, os nomes que leram podem ser reais ou fictícios, e as referências aos mesmos estão concerteza toldadas pela minha visão dos acontecimentos, pela minha memória das palavras, pelo meu jeito próprio de narração.