Gaiatos da aldeia
Paulo Almeida
31 / 03 / 2008
09:10
Já muitas vezes a tinha visto por ali, a assistir ao torpel de tantas crianças de um lado para o outro, num esforço maior que o que faziam para viver... A primeira vez que reparou, ficou com uma frase a meio, por descobrir que alguém mais escutava as asneiras que vociferava – as ‘indelicadezas’, passou a chamar-lhes desde então – e fez esquecer por aquela tarde de Domingo que estava a jogar por uma vitória. Desconcentrado, jogava apenas no intuito da admiração, da conquista de atenção... estava a “armar-se”, estava a “engatar” uma das poucas raparigas que perdeu um bocadinho de tempo a ver os jogos dos gaiatos. E repetiu-se por muitos Domingos aquele bocadinho de ritual, com sorrisos e palavras, com aproximações e brincadeiras, e antes da primavera e das andorinhas, já estavam enamorados... e gostavam de estar e falar, todos os Domingos à tarde até ao tocar do sino da aldeia para a missa da tarde... e ela ia-se, com as velhotas daquele lugar, rezar a missa e ouvir o cura dizer-lhes que tinham de ser melhores. E entre a mãe e as tias, conseguia olhar para trás, num olhar de quem gosta do que acabou de viver e sentir, e num sorrir de esperança pelo Domingo seguinte. E no verão, quando vieram os festejos populares do padroeiro - com charanga e ladaínhas – e quando a aldeia se tornava cidade pelos muitos habitantes retornados sazonalmente, ele correu atrás dela no fim da tarde para espreitar a janela da catequese e dizer-lhe adeus, e roubar-lhe um sorriso envergonhado enquanto o sacristão o enxotava para não distrair a pequenada... Era malandro, o malandro, e ia para a missa só para a ver, e ofereceu-se para capinar o pequeno quintal do pai da cachopa, cheio de ervas, só para vê-la mais um bocadinho... sabia tão bem vê-la e ouvi-la e cheirá-la num aroma com que a mãe a perfumava por ser próprio de menina-senhora.
E nos passeios pelas azinhagas em busca de flores de sardinheira, por serem mais coloridas, habituou-se a ver - e depois conheceu - o Fialho, velhote rezinza que passeava pelo seu pomar à procura de garotos nas árvores, não para os enxotar, mas antes para propor-lhes um negócio de “Levas as que quiseres para ti, desde que deixes em igual número para mim”. E quando se cruzou com o Fialho naquela tarde, na sesta, viu-lhe um livro no regaço e procurou-lhe:
-“Oohooa, que tens e de quem?” – gritou-lhe o bandalho ao aproximar-se...
- Um livro meu, e que é eu.
- Que diz?
- Escrevi eu, por isso diz-me. Manuscrevi a lembradura do que fui sendo, desde gaiato - menos que tu. Hoje é uma vida, e estava a chorá-la por isso decidi revisitá-lo...
E guardando a ideia, mudou o rumo
- Dá-me um quintal de maçãs?
- Tiradas do tronco, e com um quintal para mim ali na alcova do postigo.
E o pequeno lá foi servir-se e servir o amigo velho, e desandou à sua vida que era Domingo e a tarde trazia-lhe sorrisos. Foi a casa pedir um fiapo de papel à avó e correu para o campo, pronto para uns pontapés na bola e nas pedras, à espera da menina da pele clara que lhe prendia os sentimentos. E quando ela veio, ele chegou-se-lhe e ofereceu-lhe uma maçã, a mais suculenta de todas, polida pelo próprio na manga da casaca. E depois disse:
- Vou ser escritor, como o Nestor Fialho, o velho do Pomar! Começo agora mesmo a escrever as coisas da minha vida para coleccionar nas ideias – e rabiscou a primeira frase do seu livro e mostrou-lhe. E ela, corando, sorriu e deu-lhe um beijinho de fugida, e correu mais cedo que o sino para os degraus da capela. E ele voltou à jogatana, guardando no bolso a primeira memória do livro da sua vida.