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O Colecionador de Pérolas

A pele era velha mas não como a dos velhos obrigados a passar vidas ao sol ou ao relento. Tinha rugas, mas não eram rugas de quem vê mais perto o horizonte do fim da vida do que a sua própria memória do passado. Não era sem-abrigo, mas era vagabundo. Não era velho, mas era um homem cansado. Não era feliz, mas era livre. Não tinha nome, mas era o Artur. Não carregava grande bagagem de recordações, sempre fora fiel ao que era, sempre fora igual, sempre fora o mesmo... não lembrava o período em que fora obrigado a trabalhar em alto mar, na pesca do bacalhau, nem lembrava quando em terra firme se viu obrigado a carregar botijas de gás para sustento. Lembra-se perfeitamente, porque era assim mesmo que era o presente, de olhar para as pessoas. Olhar a sério, a fundo, aprendendo-as, não com a hipocrisia de ser falso, não com o intuito de lucrar com cada uma delas, mas no puro interesse de saber quem são. Não era inocente, no que se relacionava com o seu objectivo. Sempre fora e sentia em todo o seu ser actual que era - tal como ele próprio se apresentaria ao mundo se falasse - um colecionador de Pérolas. O mundo facilmente lhe falou, o julgou pela atitude desprendida, e rotulou de louco, e era-o, de facto. «Coitado, não regula nem tem lugar...». E não tinha, de facto. Nem Sesimbra nem Alcácer, nem a Grande Cidade nem a Aldeia do Cerco lhe pertenciam, e muito menos ele aos lugares. Como muitos outros loucos, buscava com uma sede infindável uma meta, ainda que tivesse de percorrer a sua maratona e no final cair morto. «Morrerei rico de feliz». E Mortos caímos todos, afinal... tantas vezes primeiro os que não souberam olhar para a sua própria meta e chamaram louco àquele simpático viciado em abraços. Se tivesse carteira, se tivesse fotografias, levaria consigo as suas conquistas. As pérolas que eram poucas, menos de mão cheia, e outros pequenos tesouros que ia descobrindo, bebendo da magia de viver uma relação pura, simples e verdadeira com aqueles amigos que levava com ele… mas não na memória. Era louco e sem memória, para não guardar as chacotas. «Devias estar no Telhal». Apenas uma vez sofreu, alheado dos tantos sofrimentos do mundo, porque perdeu uma pérola... não a guardou nem estimou, e esta caiu-lhe do bolso enquanto estava distraído e vidrado com uma ostra que prometia... e tinha de facto um tesouro... «troca por troca» mas nem a dor passada era de facto pertença dele. Nos restantes dias da sua vida, plena de gozo e felicidade - mas sem a perseguir nem tentar guardar com uma trela - foi sorrindo como um louco - «sou um louco» - olhando profundamente as almas humanas que tantas vezes queriam parecer outra coisa. Por fora, todas as ostras tinham aspecto dúbio, estranho, e nem nessa homogeniedade se fartou da sua busca sabendo que conquistando o seu interior, por vezes com calma, por vezes escarafunchando a entrada, era o conteúdo que importava. Encontrou algumas pérolas mas além, disso aprendeu que mesmo sem tesouros há ostras cujo interior era bonito e apetecia guardar, outras que não prestavam e deixava para trás... e, sem qualquer risco de esgotar a sua fonte, percorria a fio em busca de mais sorrisos verdadeiros de quem era precioso. «És uma pérola». Regojizava- se do achado, guardava em gestos lentos o seu tesouro, num coração genuinamente alegre, e seguia em frente. E não há história nem memória de outro homem ou bicho que fosse tão grande como ele no ofício de coleccionar as pérolas, de conhecer a Humanidade. Não servia para pastor, nem para marceneiro... apenas na verdade e na pureza do coração podia ser perito. Artur sorria como um louco, abraçava como quem não lembrava, e guardava amor em colecção…

Sobre o autor

Viajar no tempo, até à altura em que escrevia coisas soltas, sem nexo, vindas lá do fundo do esgoto da minha adolescência e juventude... por vezes pode cheirar mal.

Sobre o leitor

Um perfeito desconhecido, amigo de longa data... uma pessoa 5 estrelas, amigo do amigo, devia abrir-se mais aos outros.