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O CAMINO - Capítulo II: Grado - Salas

Ontem adormeci com gelo no joelho, e isso teve duas consequências: a boa foi que o joelho acordou recuperado e pronto para uma nova etapa. A má, foi que o gelo, entre derreter e condensar a humidade, fez molhar os meus calções na zona do bolso onde guardei a credencial. Esta ficou um tanto ou quanto húmida, mas não danificada, por sorte ou divina providência.
Acordando de uma noite atribulada, o albergue disponibilizou pequeno almoço - o que não é muito normal nos albergues municipais, tal como não é normal não terem um preço fixo mas sim a tarifa «donativo» como aconteceu aqui - e rapidamente saímos ao caminho. O dia não acordou esplendoroso, mas também não nos choveu em cima. A humidade em forma de morrinha, enquanto ameaça de chuva, foi suficiente para eu passar quase toda a caminhada de poncho vestido, mas que se manteve praticamente seco.
Saímos de Grado por uma estrada rural, bem acompanhada de cheiros do campo, e quase perseguidos por um pastor-pós-moderno que ia com a sua pickup para a frente e para trás, na mesma estrada que nós, a ir encaminhar o gado em cada um de vários pastos. Tudo isto imaginado por mim, claro, e nada confirmado.
Seguimos quase sempre a subir durante alguns quilómetros, e depois, já na encosta oposta do monte, ao descer, demos por uma auto-estrada a nascer das entranhas da montanha, mesmo ao nosso lado.
Conhecemos nesta altura um brasileiro - o Gilberto - que fez um par de quilómetros connosco, falando sobre a sua outra experiência de #camino.
O cenário alterou-se rapidamente outra vez, e pouco depois estávamos num trilho florestal ao lado de um pequeno ribeiro. A velocidade com que toda a paisagem muda à nossa volta chega a ser assustadora. Ora lama, ora troços de alcatrão em estradas aparentemente perigosas. Ora pedras - muita pedra - ora pontes sobre rios e riachos. Tudo passa, muito rápido, quase sem tempo de digerir.
Uma vila, uma estrada de montanha, uma valente subida, um desvio sinalizado por detrás de uns andaimes, um quilómetro de caminho errado... Voltar ao trilho, florestal, desembocar numa pedreira, atravessar mais campos de gado, percorrer uma recta com 1 km, parar para comer. O destino, Salas, já não estava longe.

Contornando uma fábrica da conhecida «Danone», entramos em Salas, numa avenida larga, com indicações dúbias para o albergue municipal. Atravessa-se um jardim, passa-se uma ponte sobre o ribeiro, nova avenida, zona residencial pouco aprazível, e o albergue municipal onde fazemos o check-in (C5) era uma «loja» no r/c de um prédio.
Os pés e as pernas hoje doiam mais à chegada, pelo que decidi que após almoço, ficaria a descansar. Ao final da tarde, já parcialmente recuperado, fui conhecer a vila, que tem um centro histórico bem giro, com zona muralhada, praças antigas e uma forte orientação ao pequeno rio que a atravessa, com a envolvente toda muito bem arranjada.

Cruzámo-nos com os dinamarqueses e o americano num bar, embora tenham ficado alojados noutro qualquer lugar.
Após uma refeição mais leve ao jantar, e aproveitando para adicionar o carimbo do restaurante (C6), chega a hora de ir descansar para o albergue. À entrada conhecemos uma peregrina russa - a Lili - com quem estivémos um pouco à conversa. Já na camarata, estando eu deitado no meu beliche, Lili decidiu contar-nos um curto conto infantil de Tolstoi, pelo que tivémos direito a uma história de embalar.
O saldo para este dia fica em 25.19 Km, agora é dormir!

O CAMINO - Capítulo I: Oviedo - Grado

Agora sim: Começou!
Acordei em Oviedo, num beliche do albergue municipal, num cenário meio estranho. Foi pegar nas tralhas e ir em direcção à Catedral de El Salvador de Oviedo, onde começaríamos a seguir as «flechas».
Cruzámos caminho com alguns grupos de malta nova mas não eram peregrinos, antes jovens que voltavam das suas noitadas de sábado, até às tantas.
Em várias praças, carros municipais faziam limpezas, lavagens à mangueirada para garantir que não sobram restos de sidra1 pelo chão da cidade.
Em frente à Catedral, existe uma placa no chão que marca o início! Para nós, é o local para a Oração do Peregrino:


Apóstolo Santiago, eleito entre os primeiros,
Tu foste o primeiro a beber do cálice do Senhor,
e és o grande protector dos peregrinos;
faz-nos fortes na fé e alegres na esperança,
no nosso caminhar de peregrinos seguindo o caminho da vida cristã,
e alenta-nos para que, finalmente,
alcancemos a glória de Deus Pai. Amen


E arrancámos! No caso, seguindo não as «flechas», mas as «compostelas», conchas metálicas cravadas no chão, nos passeios da cidade, nem sempre muito visíveis. Seria assim até aos limites de Oviedo, onde nos cruzámos com uma estátua de Santiago.

Pouco ou nada tinha estudado em relação ao caminho, às etapas, aos pontos de passagem. Aprendo agora que o destino desta primeira etapa era Grado.
A cidade grande ficou para trás e enveredámos por caminhos mais rurais, para depois cruzar estradas interiores. O tempo não estava muito bom - céu cinzento e carregado - e apesar de ter chovido recentemente, não houve chuva no nosso menu do dia.
Ao passarmos nas imediações de um pequeno lugar - Llampaxuga - havia uma pequena capela/ermida onde parámos para carimbar as nossas credenciais (C3) uma vez que neste local de culto, mesmo estando fechado, o carimbo estava à disposição num pequeno armário cravado na parede do guarda-vento. Pensei que era uma solução interessante para os peregrinos que pretendem carimbar em locais religiosos mas que na maioria das vezes passa por estes quando estão fechados. [*Percebi com o resto do caminho que mais nenhum lugar pensava assim.]
Neste local aproveitámos para tomar o pequeno almoço que carregámos nas mochilas.
A conversa ia boa, e distraía das dores que começaram a aparecer nos pés e no joelho direito, tal como distraía de algumas paisagens e lugares por onde fomos passando, que não fotografei com a memória para conseguir posteriormente reproduzir cada curva, cada passo. Ao final da primeira etapa, já me parecia que estava a perder uma boa parte do #camino.
[*Engraçado como ao «revisitar» com a memória os locais por onde passámos, quem encontrámos no caminho, as encruzilhadas, as estradas e os trilhos, até parece estranho pensar o quanto aconteceu logo no primeiro dia, quando à distância do tempo, depois da caminhada terminada - quando faço esta edição - diría que foram coisas que iam acontecendo pelo caminho fora nas suas mais variadas etapas.]
Chegados a Grado, procurámos o albergue municipal, e havendo lugar (lotação de 16 'plazas'), fizémos o check-in necessário (C4), e descomprimimos as tensões maiores da mochila às costas e das botas nos pés.

Acabou assim a primeira etapa, mas o dia ainda estava a meio. Era necessário procurar um local para almoçar (que não foi fácil), conhecer a povoação que não era grande, dar descanso ao joelho que ficou dorido, preparar o jantar e o mais que fosse preciso para a etapa seguinte.
Precisei pôr gelo no joelho, e uma «droga» em spray, que passou a ser o meu melhor amigo nos dias seguintes. Ficando em repouso na sala comum, acabámos por embrenhar em conversa com os responsáveis pelo albergue - um espanhol mais velho, e uma americana-coreana. Na verdade, o espanhol era praticamente surdo, portanto a conversa boa2 foi com a «Jane» e com os peregrinos que iam passando.
Conhecemos assim um peregrino americano chamado Chance, uma alemã chamada Anna, e um português chamado António, além de um grupo de 5 dinamarqueses, 1 romeno e 1 maltês.
Fui deitar-me, e pensei na minha credencial - sempre no meu bolso - onde já tinha quatro carimbos, e muito espaço em branco onde esperava colecionar cerca de vinte e oito carimbos até ao final da aventura.
O saldo para este dia fica em 27.78 Km, agora é dormir!

O CAMINO - Prólogo

Começou no dia 31 de Dezembro de 2020, ao aproximar da hora da passagem de ano, num telefonema que tinha um outro assunto mas que introduziu o convite, em modo desafio. Seria no final de Março 2021...
Depois o COVID atingiu números estupidamente altos no primeiro trimestre, em Portugal, e obrigou a cancelar... ou melhor, ficou adiado, mergulhado em silêncio e desilusão.
Ressurge novamente a 28 de Fevereiro de 2022, numa conversa informal, numa festa de aniversário, atirando o desafio para início de Maio.
O prazo era curto mas foi sem frenesim que conversei a hipótese em família, marquei férias, agendei caminhadas de preparação e comecei a mentalizar-me...
A partida real foi a 30 de Abril, numa viagem de carro Algueirão-Oviedo (8h) dando tempo para entrar na Catedral a pedir informações e um carimbo na credencial (C1), e depois para almoçar, entrar no albergue (C2), voltar à Catedral para a eucaristia, e preparar o #camino que se iniciaria no dia seguinte - Domingo, dia 1 de Maio.
Vamos a isso.

Across the universe




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Sobre o autor

Talvez tenha demasiado tempo livre, e invente por 5 pessoas diferentes... pelo menos não ando nas drogas. E não, não sofro de esquizofrenia!, embora tenha muitas faces diferentes... Tenho uma paixão por astronomia, um forte interesse por informática, um perfil para (não) ser pai, uma família «out-of-my-league», uma visão distópica da sociedade, uma mania que tenho piada, uma educação conservadora, uma introversão crónica acentuada, um sonho de ser aceite.

Sobre o leitor

Um perfeito desconhecido, amigo de longa data... uma pessoa 5 estrelas, amigo do amigo, devia abrir-se mais aos outros.